A digitalização da construção entrou numa nova fase. Depois da adoção do BIM (Building Information Modeling) como ferramenta de coordenação e projeto, o setor começa agora a dar passos firmes rumo à integração dos gémeos digitais (Digital Twins) e da realidade aumentada (RA) – tecnologias que, mais do que representações virtuais, prometem mudar profundamente a forma como concebemos, fabricamos e gerimos a envolvente do edifício.
Fachadas, janelas, sombreamentos e sistemas de revestimento estão a tornar-se entidades ‘inteligentes’, acompanhadas por um duplo digital que reflete em tempo real o seu desempenho e evolução ao longo do ciclo de vida. A lógica é simples, mas transformadora: um modelo digital continuamente atualizado por dados provenientes do mundo físico – medições, condições ambientais, manutenção – que permite simular comportamentos, prever anomalias e otimizar intervenções antes que os problemas ocorram. Na envolvente do edifício, isto traduz-se em ganhos claros de eficiência energética, qualidade construtiva e sustentabilidade.
A RA, por sua vez, projeta essa informação digital no contexto real, permitindo que técnicos, projetistas ou instaladores visualizem, em campo, o comportamento previsto de um elemento ou confirmem a correta execução de uma interface construtiva.
Este avanço reflete uma tendência global: as grandes referências da engenharia e arquitetura já incorporam gémeos digitais em edifícios e infraestruturas, associando-lhes sensores IoT (Internet of Things ou Internet das Coisas), inteligência artificial e algoritmos de análise preditiva.
No entanto, a transição não se faz apenas de tecnologia: exige interoperabilidade, normalização e novas competências, como sublinha o professor António Aguiar da Costa, investigador do CERIS – Instituto Superior Técnico. “No REV@Construction, o digital twin e a realidade aumentada foram entendidos como elementos centrais de uma transformação estrutural do setor, e não como exercícios tecnológicos isolados”, explica. A visão do projeto, coordenado pelo CERIS, foi assegurar continuidade de informação ao longo de todo o ciclo de vida do ativo, ligando projeto, construção e operação através de uma representação digital coerente e permanentemente alinhada com a realidade física.
DigiTrace. © Reynaers Aluminium
Segundo o investigador, o gémeo digital é a evolução natural do BIM, “um sistema vivo de gestão de informação, alimentado por dados reais, regras de desempenho e processos de atualização contínua”. Já a RA acrescenta “a dimensão operativa”, permitindo materializar no terreno o valor dessa informação, quer em montagem assistida, quer em verificação as-built ou diagnóstico in situ.
Esta integração conceptual – BIM, digital twin e RA – constitui o núcleo da Twin Transition: a convergência entre digitalização e sustentabilidade.
A indústria começa a seguir o mesmo caminho. Um exemplo concreto é o da Reynaers Aluminium, que desenvolveu o DigiTrace, um sistema de gémeos digitais aplicado a fachadas, janelas e portas. A empresa explora também tecnologias imersivas, como a sala Avalon, para visualizar projetos em escala real antes da construção.
Com o DigiTrace, cada elemento físico é identificado por um código QR único, permitindo aceder de imediato a dados técnicos, históricos de manutenção e certificações. “A manutenção torna-se significativamente mais acessível, simples e eficiente”, afirma Marta Ramos, diretora de Marketing da Reynaers Aluminium e Forster Profile Systems. O DigiTrace permite que todos os intervenientes, do arquiteto ao instalador, consultem o histórico e adicionem observações diretamente associadas ao produto, centralizando toda a informação num ponto digital.
Numa fase seguinte a plataforma passará a integrar as Declarações Ambientais de Produto (EPD), reforçando a rastreabilidade e a transparência ambiental. Este desenvolvimento, explica Marta Ramos, está alinhado com as exigências do novo Regulamento dos Produtos de Construção, que colocará a digitalização e a rastreabilidade no centro da conformidade técnica e ambiental dos materiais de construção.
A ligação entre o DigiTrace e o BIM é outro passo determinante. Embora a integração total ainda esteja em evolução, a Reynaers já disponibiliza modelos BIM em formato IFC (Industry Foundation Classes, o formato aberto e normalizado de partilha de modelos BIM), que podem ser importados para o seu sistema ReynaPro – uma plataforma CPQ (Configure, Price, Quote) que garante correspondência rigorosa entre o projeto digital e a solução real fabricada. Quando o projeto o exige, o modelo pode ser carregado diretamente no gémeo digital, ficando acessível através do código QR do produto instalado. “O próximo passo será a ligação automática entre o modelo BIM e o digital twin, criando um ecossistema totalmente integrado e dinâmico”, antecipa a responsável.
Esta aproximação entre o mundo físico e o digital começa a traduzir-se em métricas concretas. Na Reynaers, o retorno do investimento mede-se sobretudo pela proximidade com o cliente e pela melhoria contínua baseada em dados reais. A recolha e análise de informação proveniente do uso efetivo dos produtos – desde as dimensões aos contextos de aplicação ou condições ambientais – permitem otimizar o design e o desempenho futuro das soluções. “O DigiTrace materializa o nosso compromisso com a sustentabilidade de todos os ângulos”, resume Marta Ramos, destacando a rastreabilidade, a durabilidade e a transparência como pilares centrais.
Sala Avalon. © Reynaers Aluminium
Investigação e normalização como bases para a maturidade digital
Enquanto as empresas avançam na digitalização da envolvente, a investigação nacional prepara o terreno metodológico e normativo.
No CERIS/IST, os trabalhos em interoperabilidade, modelação semântica e metodologias BIM orientadas ao ciclo de vida têm sido decisivos. “Trabalhamos o BIM não como mero instrumento de projeto, mas como núcleo estruturante de informação, capaz de incorporar simulação avançada, avaliação de ciclo de vida e analítica computacional”, refere António Aguiar da Costa. A RA surge, assim, como extensão natural dessa lógica, aproximando o modelo da realidade física e permitindo inspeções assistidas, validação geométrica e apoio técnico no local.
Projetos como o REV@Construction, o Circular EcoBIM e o Digital4Health consolidaram esta base metodológica, introduzindo modelos BIM enriquecidos com dados de desempenho, circularidade e impacto ambiental. Na envolvente do edifício, estas ferramentas abrem caminho a gémeos digitais orientados à operação eficiente e à sustentabilidade, fundamentais para atingir metas de descarbonização e economia circular.
O investigador sublinha ainda a relevância da normalização europeia e da proposta de atualização da Portaria 255/2023, fundamentais para enquadrar a digitalização do setor e garantir coerência regulatória.
Mas os desafios permanecem: a interoperabilidade entre plataformas, a definição de protocolos de atualização e a maturidade digital desigual do setor. “O Plan4Digital mostrou-nos um setor em evolução, mas com maturidade muito desigual”, reconhece o investigador do Técnico. Digitalizar, diz, “é construir capacidade institucional”. O caminho faz-se com regras claras, métricas de maturidade, formação e políticas públicas consistentes que consolidem uma cultura de dados e integração.
A envolvente do edifício, pela sua complexidade técnica e relevância energética, é hoje um laboratório privilegiado para esta transformação. Entre a investigação e a indústria, a convergência é clara: a construção do futuro será conectada, transparente e preditiva. E cada janela, fachada ou sombreamento poderá, em breve, contar a sua própria história, em tempo real, no respetivo gémeo digital.
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